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  • Foto do escritorTHAYSA FERREIRA DE ALMEIDA

O assassinato da escravizada Luíza: HQ's como ferramenta didático-pedagógica no ensino de história




Ensinar História de uma forma que prenda a atenção dos jovens em sala de aula se constituiu uma das minhas reflexões enquanto professora. Foi aí que surgiu a ideia de produzir uma História em quadrinhos! Partindo do entendimento de que podemos considerar as HQs como importantes fontes das quais podem – e devem – partir problematizações imagéticas e textuais, sua utilização no ensino da história pode ser feita de diferentes maneiras, tanto para ilustrar ou fornecer uma ideia de aspectos da vida social de comunidades do passado, como registros da época em que foram produzidos e como ponto de partida de discussões de conceitos da História (VILELA, 2004).


A HQ “Lúíza: Reflexões sobre a questão da mulher negra no Brasil” nasceu como fruto da minha pesquisa de Mestrado Profissional em História pela Universidade Católica de Pernambuco (PPGH), intitulada “O assassinato da escravizada Luíza: um estudo de caso sobre as relações de poder, trabalho e sociabilidade no Recife Oitocentista”. Tendo como plano de fundo o Recife do século XIX, a HQ apresenta uma narrativa a partir da análise dos fatos contidos no processo crime iniciado em 26 de dezembro de 1863, que se estendeu até 26 de novembro de 1866. Partindo da vida e morte de Luíza, a ideia é que se reflita sobre o papel da mulher negra na sociedade brasileira – ainda patriarcal e racista.


Possuindo uma linguagem suave e elucidativa, o material conta com ilustrações que ajudam o leitor a submergir na configuração histórica através de um estudo de caso que o conduzirá à algumas discussões, como: o uso das fontes judiciais na construção historiográfica; as relações de poder existentes no período em questão; os costumes sociais do Recife dos Oitocentos; a vivência de escravizados e, afinal, quem fora esta mulher assassinada.


A HQ conta com 74 páginas e está estruturada a partir de cinco pontos – como mostrado logo abaixo. Também dispõe de um apêndice com algumas páginas do processo, uma cronologia dos acontecimentos e algumas citações da historiografia do crime e escravidão, além da bibliografia utilizada em seu processo de criação.


PARTE I – INTRODUÇÃO


A introdução da história é feita por uma mulher negra da contemporaneidade, professora de história e que está em sala de aula instigando seus alunos a pensarem a estruturação do sistema patriarcal racista da atualidade. Para que o assunto fique mais compreensível, decide então se reportar ao Recife dos oitocentos e ao caso de Luíza. O ponto de partida é a cidade, lugar onde tudo acontece. Pensar sua configuração espacial, sua organização social e o dia a dia das pessoas – em especial de escravizadas – tem como principal objetivo ambientar seus alunos – e os leitores da HQ. A ideia é que o próprio entendimento da disposição da cidade os leve ao entendimento do crime e suas possíveis razões, obedecendo ao artificio da fluidez.


Rapidamente, o Recife dos Oitocentos será apresentado de uma maneira geral com seus principais bairros e seu cotidiano. A presença de escravizados em suas ruas desempenhando diversos afazeres é um aspecto evidenciado. A partir deste primeiro momento, seguimos para uma pequena apresentação da Freguesia dos Afogados e região onde aconteceu o crime. Identificar a localidade como sendo habitada majoritariamente por negros, pardos e pessoas abastadas é o fio condutor que nos levará à uma de suas moradoras, Luíza.


As ilustrações acabam sendo ainda mais interessantes para leitores que se encontram no Recife por retratarem locais que ainda hoje podem ser avistados tais como no período em questão, como o Teatro Santa Isabel, o Palácio do Governo e a antiga Casa de Detenção do Recife, atual Casa da Cultura.




PARTE II – LUÍZA E SUA VIVÊNCIA


Após trazer um pouco da configuração da cidade, é hora de apresentar Luíza. Moradora da Freguesia dos afogados e escravizada doméstica do senhor Luíz de Gonzaga Senna, que vivia de “negócios”. Neste ponto, a intenção é delinear o cotidiano de uma escravizada que residia no âmbito urbano, seus afazeres, isto é, seus serviços propriamente domésticos no interior da casa e no vaivém das ruas entre uma venda e outra, bem como as suas redes de sociabilidade.


Pela dinâmica imposta a sua vida, aqui introduzimos a questão da fuga, ora conectada às suas próprias conexões pessoais, ora às condições ideológicas que a cidade fornecia. Também é interessante destacar a representação imaginária que imprime o nome da rua em que Luiza morava: Catucá dos Afogados. Catucá que havia sido um quilombo é um símbolo de resistência, assim como Luíza que constantemente buscava escapar de seu senhor.



PARTE III – O CRIME


Após oferecer o pano de fundo do Recife e a vivência de Luíza marcada por tentativas de fuga, é hora de entrarmos na parte principal da HQ: o crime de homicídio ocorrido no dia 15 de dezembro de 1863, noticiado pelo Diario de Pernambuco dias após o ocorrido, gerando repercussão por tratar de ser nas palavras do Promotor Público Francisco L. de Gusmão Lobo, um “facto que encheu de justa indignação a população d’esta cidade”. O capítulo conta com a chegada dos peritos na cena do crime, a inquirição das testemunhas, o recolhimento do senhor à Casa de Detenção, seu depoimento e o libelo acusatório.





PARTE IV – O JULGAMENTO: LUÍS GONZAGA DE SENNA NO BANCO DOS RÉUS


Como o próprio título já diz, após líbelo acusatório será abordada a questão do julgamento que teve início em 2 de junho de acordo com o “termo de reunião” do júri. Aqui é apresentada a sessão julgamento, seu funcionamento, os argumentos do senhor e o desfecho a partir da sentença.




⦁ PARTE V – A QUESTÃO DA MULHER NEGRA NO BRASIL


Findo o julgamento em 1865, os tramites processuais encerram-se em 1866. Luiz Gonzaga de Senna, um homem branco, que vivia de negócios e que era proprietário da escravizada foi inocentado por uma justiça constituída de homens igualmente brancos, de posses e que corroboravam com a escravização. O sucedido com Luíza, personagem que tomamos para refletir sobre a questão da mulher negra no Brasil passa, antes de tudo, pelo entendimento que essas mulheres ocuparam desde a colonização o mais baixo nível de hierarquia social.


Para atestar esta herança, como fruto da reflexão do sucedido por Luiza enquanto uma mulher negra e escravizada doméstica e sobre a questão da mulher negra de uma forma geral, pretendemos trazer alguns casos ocorridos na contemporaneidade. Ainda que nem todos tenham terminado em assassinato, todos convergem no mesmo sentido: a constante tentativa de subalternização de mulheres negras, trabalhadoras domésticas, e a ineficiência estatal em superar o passado colonial manifesto no patriarcalismo e no racismo.






Para além da educação básica, viso sua aplicação direcionada aos Núcleos de Estudo Afro-Brasileiros e Indígena (NEABIs) vinculados às instituições de Ensino Superior na qualidade de instância que prioriza estudos e projetos que despertam o olhar da comunidade acadêmica para as relações étnico-raciais e que debatem questões atuais da população negra e indígena. No mais, o produto estará disponível ao público em geral e para ser utilizado em todo e qualquer espaço que se proponha a discutir crime, escravidão, a questão da mulher negra, permanências históricas, relações étnico-raciais, entre outros.


Este trabalho tem sido resultado das minhas inquietações enquanto historiadora e mulher negra que sente na pele o pesar de uma sociedade racista e sexista, pois ao analisarmos a vivência de Luíza percebemos que apesar de toda violência a qual foi submetida, ela resistiu até o fim de sua vida buscando frequentemente escapar de seu senhor. Quando cruzamos sua experiência com a vivência de outras mulheres negras, concluímos que o mal que recaia sobre si é o mesmo mal que insiste em incidir sobre as "Luizas" contemporâneas. Entender a vivência de mulheres escravizadas é o ponto de partida para se pensar a realidade das mulheres negras na contemporaneidade e assim poder contribuir para as reflexões do âmbito Étnico-racial e na formação de pessoas antirracistas.



Por Joyce Mesquita



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