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Os Super-Heróis como Promotores de Desenvolvimento Humano na Escola

Foto do escritor: Fábio PaivaFábio Paiva

Os Super-Heróis como Promotores de Desenvolvimento Humano na Escola


Gelson Weschenfelder


As histórias em quadrinhos (HQs) de super-heróis, sob a ótica de grande parte da população, destinam-se especialmente ao público infanto-juvenil e servem apenas para entretenimento. Essa visão, entretanto, carece de uma revisão, visto que, além de entreter, elas podem exercer outra finalidade: atuar sobre o sujeito, envolvendo-o em um processo de autoconhecimento e, por consequência, incitá-lo a tomar posicionamentos em relação a si e ao mundo.

A atuação das histórias em quadrinhos sobre o leitor ocorre porque elas introduzem e abordam, de maneira significativa, algumas questões de suma importância na vida dos seres humanos, as quais estão relacionadas ao seu cotidiano. São temas ligados à superação de adversidades, construção de identidade pessoal, elementos de ética, moral, justiça, enfrentamento de medos, de situações de violência, entre outros (WESCHENFELDER, 2011).

O reconhecimento da natureza e a identificação das funções das histórias em quadrinhos são condições importantes para a qualificação de um processo educacional que vise à formação integral do indivíduo. Essa tomada de posição em relação ao gênero em questão é ainda mais relevante caso se considere o crescente número de pessoas que vivem em condições desfavoráveis no Brasil e no mundo, portanto, inseridas em um contexto de vulnerabilidade.

Um grupo, em particular, que merece a atenção de investigadores, refere-se às crianças e jovens que, pelas peculiaridades dessas fases de desenvolvimento, estão expostos a condições que podem resultar em comportamentos, padrões de conduta e rotinas que, por vezes, perduram durante a fase adulta (WINDLE et al., 2004; WORLD HEALTH ORGANIZATION, 2004).

Reiterando essa preocupação no Brasil, o último balanço do governo revelou o registro de mais 70 mil denúncias de violações de direitos humanos. Destas, 42.114 são relacionadas às violações dos direitos de crianças e adolescentes. Assim sendo, em 63,2% dos casos, os alvos das violações são as crianças e adolescentes, que constituem um segmento bastante fragilizado da população brasileira. Segundo o estudo da Secretaria, os abusos registrados contra crianças e adolescentes estão mais concentrados em episódios de negligência (definida como a ausência ou ineficiência no cuidado), com 76,35%, seguida de violência psicológica, com (47,76%), violência física, (42,66%) e violência sexual, (21,90%). 

Intervenções positivas

É consenso a responsabilidade da escola de promover, em conjunto com a família, o desenvolvimento pleno de crianças e adolescentes. No entanto, é nesse mesmo contexto escolar que são registradas inúmeras e frequentes manifestações de comportamentos agressivos, conflitos e de expressões de intolerância (ABROMOVAY, 2002; PORTELA, DALBOSCO, 2016).

As características dessas violências envolvem bullying (FERNANDES et al, 2017; FERNANDES, 2016), agressões físicas e verbais entre pares ou contra educadores, depredações na estrutura física dos espaços, consumo de drogas, porte de armas, preconceito e discriminação, entre outros (PORTELA, DALBOSCO, 2016).

É inegável a implicação dos riscos causados por essas situações na saúde social dos jovens e, sobretudo, na constituição psicológica dos adolescentes em desenvolvimento, tais como prejuízo nas relações sociais; diminuição da qualidade de vida; impactos no desenvolvimento emocional; depressão; transtornos pós-traumáticos, entre outros (PORTELA, DALBOSCO, 2016).

Diante dessa realidade, poder-se-ia afirmar a necessidade de muito planejamento e da execução de intervenções protetivas ou “intervenções psicoeducacionais positivas”. Além disso, são ações que visam a promover resiliência, por meio de transformações de si e de seu meio social (YUNES, 2015) e, consequentemente, o fortalecimento pessoal e social. Conforme Yunes, Silveira, Juliano, Pietro e Garcia (2013), desenhar e realizar uma intervenção positiva propõe atuar preventivamente, ou seja, operar na etapa em que indivíduos, grupos e comunidades ainda estão saudáveis e produtivos. Tais intervenções somente tornam-se possíveis se os condutores das mesmas partirem de uma visão mais otimista dos seres humanos. Esse é um grande desafio no mundo atual, altamente midiático, que se caracteriza pela oferta e consumo em massa de manchetes e reportagens que vendem o lado perverso e maldoso de alguns seres (des)humanos (WESCHENFELDER et al, 2018). Sendo assim, justifica-se a elaboração de intervenções positivas em ambientes educativos formais, as quais possam suscitar ações que visam a promover aprendizagens transformadoras e geradoras de resiliência a partir de exemplos inspiradores e interações de bons tratos (WESCHENFELDER, 2020b). Entre as ações, situa-se a inserção gênero história em quadrinhos – com seus vários super-heróis – no rol de leituras a serem realizadas em aula, com a mediação do professor.

Os super-heróis e o público infanto-juvenil Os super-heróis estimulam virtudes nas crianças, como a coragem, a força para enfrentar desafios, vencer os medos; a atitude de proteger os mais fracos, defender ideais positivos, etc. (WESCHENFELDER, 2011). Nesse sentido, eles representam os atributos que os humanos mais admiram em si próprios. Portanto, os personagens são mais do que ídolos, são modelos morais. Esse posicionamento vai de encontro à ideia, bastante disseminada, de que as HQs – e suas adaptações para os desenhos animados de TV e para o Cinema – prejudicam a formação da criança e/ou do adolescente. No confronto do ‘Bem contra o Mal’, temática recorrente nas HQs, não há indução do leitor/espectador à violência; ao contrário, os ensinamentos acionam estratégias de resolução de conflitos com dignidade (WESCHENFELDER, 2011).

Assim, as HQs podem se constituir em instrumentos pedagógicos potentes, principalmente para o encontro de exemplos de superação e enfrentamento de situações difíceis que remetem ao construto da resiliência (MASTEN, 2014; WALSH, 2005; YUNES, 2015).

Uma ideia pouco disseminada entre o público é que a grande maioria dos super-heróis das HQs sofreram (ou ainda sofrem) com adversidades sociais. As histórias trazem, em seus enredos, a superação dessas adversidades por intermédio do empoderamento e poder de enfrentamento dos males e sofrimentos de diversas formas. Assim, o simbolismo dos super- heróis como uma “ferramenta” de intervenção psicoeducacional e promotora de resiliência e empoderamento traz importantes benefícios a crianças e adolescentes no enfrentamento do sofrimento das adversidades sociais. Projetar esses personagens ficcionais como modelos de superação e possibilitar que as crianças, em seus momentos vulneráveis, se inspirem para superar seus sofrimentos pode ser um motor propulsor para fazer uma “virada” (RUTTER, 1987) de grande significado para o resto de suas vidas.

Estudos demonstram (WESCHENFELDER, 2017) que é possível realizar paralelos entre as adversidades da vida real de crianças e jovens desfavorecidos (por abandono, abuso, etc.), por exemplo, e as histórias de vida ficcionais vividas pelos super-heróis, especialmente no estágio anterior à transformação desses personagens heroicos, ou seja, antes de usarem suas “capas e/ou máscaras e fantasias”, sinais simbólicos da força e da coragem para combater o crime e o mal (WESCHENFELDER, 2011). Tal fato leva a questionar e investigar quais seriam as implicações clínicas, sociais, educacionais e políticas dessas semelhanças para a construção de programas de apoio e promoção de resiliência em diferentes ambientes educativos.

HQs em ambiente escolar

Talvez poucos profissionais da educação acreditem que os personagens de superaventura possam ser usados como recurso pedagógico de motivação e inspiração no desenvolvimento de crianças. Ao tratar desse tema Weschenfelder (2014), ressalta que personagens super-heroicos apresentam potencial como recurso educativo e podem se fazer presentes nas salas de aula.

Mas, em que medida o personagem pode contribuir na fase que antecede sua transformação em super-herói, ou seja, antes de se empoderar, de adquirir superpoderes, ainda destituído das capas e máscaras que escondem sua identidade real? Como todo o indivíduo da vida real, ele também vive momentos difíceis, enfrenta desafios, obstáculos, enfim, tem suas dificuldades, as quais precisa superar. Em uma indexação das adversidades vividas pelos super-heróis, um estudo (FRADKIN, WESCHENFELDER & YUNES, 2016) evidencia que a grande maioria dos personagens de superaventura já viveu ou vive alguma adversidade, tais como orfandade (Homem-Aranha, Superman, Batman), abandono pela família (Hulk, Superman, Viúva Negra), tem um membro da amília assassinado (Homem-Aranha, Batman), possui limitações econômicas (Capitão América, Homem-Aranha), sofre sequestro (Homem de Ferro) e Bullying (Homem-Aranha, Capitão América), abusos e violência sexual (Mulher-Gato, Miss Marvel, Canário Negro). Essas histórias de adversidades na fase Pré-Capa/Pré-Máscara dos super-heróis apresentam potencial para promover o empoderamento de crianças e jovens de grupos vulneráveis (FRADKIN; WESCHENFELDER ; YUNES, 2016).

Os personagens super-heroicos já estão presentes no imaginário infanto-juvenil e, assim, estão automaticamente inclusos numa elaboração interventiva, tendo grande força deidentificação lúdica e auxiliando no encontro de caminhos com gosto de empoderamento. Entretanto, cabe ressaltar que, em um ambiente de sala de aula, existe uma linha tênue entre se inspirar nos super-heróis e ter um profissional da educação como tutor ou mediador para promover uma intervenção usando super-heróis.

Harris (2016) acredita que os super-heróis possam ser uma fonte de motivação e inspiração positiva para crianças e adolescentes. Portanto, em sala de aula, o uso de super-herói tem um imenso valor por razões afirmadas pela autora, que são a socialização, a reciprocidade, a promoção de resiliência, a construção da comunidade e o empoderamento da criança (WESCHENFELDER, 2020a). Nesse sentido, levar o jovem leitor a identificar-se com os super-heróis pode ser visto como uma iniciativa de formação, e a utilização da figura dos super-heróis das HQs entre populações vulneráveis de crianças e adolescentes (FRADKIN et al, 2016) como estratégia de reabilitação.

Reflexões finais

Às HQs e suas histórias pode ser atribuída somente a função de entretenimento. Entretanto, breve incursão pelas narrativas revela que esse posicionamento é equivocado. O simples fato de se ter investido tanto na difusão dessas histórias, seja na sua forma impressa, clássica, seja na forma das mídias eletrônicas mais recentes, aponta para algo além do imediato. É facilmente identificável que as HQs não são tão inocentes como parecem e não trazem tão somente entretenimento ao seu leitor. As histórias introduzem e abordam, de forma vívida, questões de suma importância enfrentadas pelos humanos em seu cotidiano, relacionadas à ética, à responsabilidade pessoal e social, à mente e às emoções humanas, à identidade pessoal, ao sentido de vida, ao que se pensa da ciência e da natureza, à amizade, à vida em família, à coragem de enfrentar medos, à superação, resiliência, entre muitas outras. Talvez seja, por este motivo, que muitos se prendem ao universo dos super-heróis e dão grande audiência a este tema. A leitura e assistência de HQs pode provocar, no leitor/espectador, a reflexão sobre os problemas centrais da condição humana, como a natureza do destino ou conflitos entre a compaixão e a justiça, exatamente por apresentarem atributos que os humanos mais admiram em si próprios. Nessa ordem, os personagens são mais que ídolos, são modelos. 

Assim, na contramão do que muitas pessoas pensam, as HQs e suas adaptações para os desenhos animados de TV e para o Cinema não prejudicam a formação da criança e/ou adolescente, muito pelo contrário, ajudam-na em sua formação. No confronto do ‘Bem contra o Mal’, temática recorrente nas HQs, não há indução do leitor/espectador à violência, mas os ensinamentos apontam para as possibilidades de resolver conflitos com dignidade moral (WESCHENFELDER, 2011). Portanto, as HQs constituem-se em instrumentos pedagógicos, principalmente para o encontro de exemplos de superação e enfrentamento de situações difíceis que remetem ao construto da resiliência.

Percebe-se, assim, a relação entre a vida dos super-heróis, marcada pela vulnerabilidade, e as adversidades que muitas crianças e adolescentes enfrentam em seu dia a dia. Assim, as narrativas dos super-heróis podem se constituir em ferramenta de intervenção psicoeducacional e promotora de resiliência e empoderamento. A identificação com os super-heróis dos quadrinhos pode auxiliar crianças e adolescentes a enfrentarem o sofrimento de suas (ainda) incompreensíveis adversidades.

Projetar esses personagens ficcionais como modelos de superação, e possibilitar que as crianças em momentos vulneráveis de suas vidas se inspirem nelas para superar seus sofrimentos pode ser um motor propulsor para fazer uma “virada” de grande significado para o resto de suas vidas. Nesse contexto, os super-heróis se constituem em grande potencial para o desenvolvimento humano de crianças e adolescentes.

REFERÊNCIAS

ABRAMOVAY, M. Escola e violência. Brasília: Unesco Brasil, 2002. Disponível em:

FERNANDES, G.; YUNES, M. A.; TASCHETTO, L. R.. Bullying no ambiente escolar: O papel do professor e da escola como promotores de resiliência. Revista sociais e Humanas, v. 30, p. 141-154, 2017.

FERNANDES, Grazielli. Violência doméstica e bullying [manuscrito]: a percepção da rede de relações sob ótica da bioecologia do desenvolvimento humano. Dissertação (mestrado em Educação) – Centro Universitário La Salle, Canoas, 2016.

FRADKIN, C., WESCHENFELDER, G. V., & YUNES, M. A. M. Shared adversities of children and comic superheroes as resources for promoting resilience: Comic superheroes are an untapped resource for empowering vulnerable children. Child abuse & neglect. 2016. Disponível em: http://www.sciencedirect.com/science/article/pii/S0145213415003683 

HARRIS, K. I. Heroes of resiliency and reciprocity: teachers’ supporting role for reconceptualizing superhero play in early childhood settings. Pastoral Care in Education, v. 1 n.16, 2016.

MASTEN, A. S. Ordinary magic: resilience progresses in development. New York, London: The Guilford Press, 2014. 

PORTELA, Jaqueline G.; DALBOSCO, Débora D.. Violência escolar: Associação com violência intrafamiliar, satisfação de vida e sintomas internalizantes. Boletim Academia Paulista de Psicologia, v. 36, n. 91, p. 340-356, 2016.

RUTTER, M. Psychosocial resilience and protective mechanisms. American Journal of Orthopsychiatry, v.57, 1987.

WALSH, F. Fortalecendo a resiliência familiar. São Paulo: Editora Roca, 2005.

WESCHENFELDER, Gelson. Homens de Aço? Ossuper-heróis como tutores de resiliência. Curitiba: Appris, 2020a.

WESCHENFELDER, G. V.; YUNES, M. A. M.; FRADKIN, Chris . Super-heróis na fase pré-capa/pré-máscara: inspiração para intervenções psicoeducacionais positivas. Pesquisa e práticas psicossociais, v. 15, p. 1-12, 2020b.

WESCHENFELDER, G. FRADKIN, C. & YUNES, M. A. M. Super- Heróis na fase Pré Capa/Pré-Máscara como base de inspiração para intervenções psicoeducacionais positivas. Psicologia – Teoria e Pesquisa. 2018.

WESCHENFELDER, Gelson. Os super-heróis das histórias em quadrinhos como recursos para a promoção de resiliência para crianças e adolescentes em situação de risco. Tese (Doutorado em Educação) – Universidade La Salle, Canoas, 2017.

WESCHENFELDER, Gelson. Aristóteles e os super-heróis: a ética inserida nas histórias em quadrinhos. São Bernardo do Campo, SP: Garcia edizioni, 2014.

WESCHENFELDER, Gelson. Aspectos educativos das histórias em quadrinhos de super-heróis e sua importância na formação moral, na perspectiva da ética aristotélica das virtudes. Dissertação, Unilasalle, 2011.

WESCHENFELDER, Gelson. Filosofando com os super-heróis. Porto Alegre: Mediação, 2011.

WINDLE, M., GRUNBAUM, J. A., ELLIOTT, M., TORTOLERO, S. R., BERRY, S., GILLILAND, J., SCHUSTER, M. Healthy passages: A multilevel, multimethod longitudinal study of adolescent health. American Journal of Preventive Medicine, v. 27, p. 164-172, 2004.

WORLD HEALTH ORGANIZATION. World report on violence and health. Geneva: WHO, 2002. Disponível em: http://www.who.int/violence_injury_prevention/violence/world_report/en/summary_en.pdf 

YUNES, M. A. M. Dimensões conceituais da resiliência e suas interfaces com risco e proteção. In MURTA, C. L.; FRANÇA, C. L.; BRITO, K.; POLEJAK, L. (Org.). Prevenção e promoção em saúde mental: Fundamentos, planejamentos e estratégias de intervenção. Novo Hamburgo: Synopisis, 2015.


Por Gelson Weschenfelder


 Doutor e Mestre em Educação. Graduado em Filosofia. Graduando em Psicopedagogia e Pedagogia. Professor do IFRS Campus Farroupila.

 Instagram @filosofodosquadrinhos

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